Natureza do som de Joyce Moreno é preservada em disco feito com maestro Claus Ogerman há 45 anos

Dado como perdido, álbum de samba-jazz sai em 30 de setembro com sete faixas gravadas em 1977 pela artista, em Nova York, com Maurício Maestro e músicos brasileiros e norte-americanos
06/12/2023 00:54
noticia Natureza do som de Joyce Moreno é preservada em disco feito com maestro Claus Ogerman há 45 anos
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Artista: Joyce Moreno com Mauricio Maestro
Ano da gravação: 1977

 Tentar decifrar em 2022 o que aconteceria com a carreira de Joyce Moreno se o álbum Natureza tivesse sido lançado em 1977 – ano em que o disco foi gravado em Nova York (EUA) com produção musical e arranjos do maestro alemão Claus Ogerman (29 de abril de 1930 – 8 de março de 2016) – é mero especulativo exercício de futurologia sobre possibilidade enterrada no passado.
Pode ser que o suingue singular da música e do violão da cantora, compositora e instrumentista carioca tivesse alcançado visibilidade planetária, antecipando em duas décadas o que aconteceu nos anos 1990 quando músicas como Aldeia de Ogum (Joyce Moreno, 1980) caíram em pistas europeias, abrindo para Joyce um mercado que gerou álbuns feitos para o Japão, Europa e/ou Estados Unidos.


Mas também pode ser que, pela barreira imposta pela língua portuguesa, Natureza se tornasse álbum cultuado somente no nicho norte-americano do jazz – e não foi por acaso que Ogerman insistiu para que Joyce regravasse as músicas com letras alternativas em inglês para que o disco pudesse ser absorvido sem restrições pelo mercado dos Estados Unidos.
Joyce resistiu à ideia, o que parece ter desmotivado Ogerman a lutar pela edição do disco, arquivado (inclusive por questões de ordem jurídica) e dado como perdido até que a fita da gravação – feita nos estúdios da gravadora Columbia por Joyce Moreno (voz, violão e vocais) com a colaboração de Mauricio Maestro (voz, violão e vocais) – fosse encontrada por sobrinha de Ogerman, após a morte do maestro.

A descoberta da fita viabilizou a edição do álbum Natureza, após 45 anos, via Far Out Recordings, gravadora inglesa que edita discos de Joyce há 23 anos, precisamente desde o álbum Hard bossa (1999).
E o fato é que Natureza chega ao mundo digital em 30 de setembro – com capa assinada por Alessandro Renaldin em cuja arte vê-se a silhueta do Cristo Redentor – e ganha edição física em LP e CD programados para 28 de outubro, ambos com as sete faixas gravadas por Joyce e Mauricio com músicos do naipe do baterista João Palma (1943 – 2016), do percussionista Naná Vasconcelos (1944 – 2016) e do ritmista Tutty Moreno (percussão e bateria), instrumentista com quem Joyce se afinou na música e na vida.

Conceituados músicos norte-americanos de jazz – como o baixista Buster Williams, o flautista Joe Farrell (1937 – 1986), o saxofonista Michael Brecker (1949 – 2007), o vibrafonista Mike Mainieri e o pianista Warren Bernhardt – foram arregimentados por Ogerman para a gravação e contribuíram decisivamente para que Natureza resultasse, em essência, em disco de samba-jazz. Ou de samba com jazz.

A natureza jazzística do álbum já ficou claro quando a gravação de Feminina – a rigor, o primeiro registro fonográfico do samba efetivamente apresentado ao mundo em 1979 nas vozes do Quarteto em Cy – emergiu em 1999 na coletânea A trip to Brasil II. Com 11 minutos e 25 segundos, a gravação de Feminina é a pista certeira do som do álbum Natureza.

O disco tem viço, como mostra a pulsação do samba Moreno, embasado com a percussão e a bateria de Tutty Moreno – muso inspirador da composição em cuja letra é citado nominalmente – em gravação que resulta mais sedutora do que o (bom) registro que seria feito por Joyce dali a quatro anos para o álbum Água e luz (1981).
Contudo, mesmo soando fiel ao espírito do som de Joyce, o álbum Natureza está longe de ser o melhor exemplo da maestria de Claus Ogerman como orquestrador e regente. Não espere encontrar em Natureza arranjos orquestrais com a leveza alcançada por Ogerman em Amoroso (1977), obra-prima da discografia de João Gilberto (1931 – 2019) que chegou ao mundo no mesmo ano em que Joyce gravou Natureza com o maestro alemão que já trabalhara com Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994).
Basta ouvir a gravação de Mistérios (Joyce Moreno e Mauricio Maestro) – canção que seria lançada na voz de Milton Nascimento em gravação feita com o grupo Boca Livre para o álbum Clube da Esquina 2 (1978) – para detectar um excesso, mínimo que seja. Tanto que a faixa não resiste ao registro mais depurado e leve de Mistérios que seria feito por Joyce para o álbum Feminina (1980), flash de momento áureo da carreira da artista no Brasil.

Entrecortada por passagens instrumentais jazzísticas, a gravação do samba Coração sonhador expõe o solo vocal sem brilho de Mauricio Maestro, parceiro de Claudio Guimarães na composição. Maestro também dá voz à canção Ciclo da vida, composição de lavra própria valorizada no disco pela refinada trama dos violões, parte fundamental do criativo arranjo.
Mesmo com eventuais excessos, toda a parte instrumental do disco Natureza prima por sofisticação que expõe a interação entre os músicos. Faixa já previamente apresentada em 2002, em compilação da obra de Claus Ogerman, Descompassadamente (Joyce Moreno e Mauricio Maestro) ratifica que Natureza é disco feito para ser sorvido por seguidores do jazz, sem apelo pop ou popular.
Ainda assim, ao fim do álbum Natureza, a swingueira de Pega leve – tema sem letra (levado por Joyce nos vocais) que a artista regravaria no ano seguinte no disco coletivo Trindade (1978) e, 23 anos depois, no álbum Gafieira moderna (2001) – sinaliza que, sim, talvez a música de Joyce Moreno ganhasse o mundo em 1977.
Futurologia inútil à parte, o tempo fez justiça à artista, atualmente com 74 anos, com uma agenda cheia mundo afora e um disco de músicas inéditas a caminho, Brasileiras canções, agendado para agosto.
No fim das contas, o que importa é que a natureza da obra da artista – preservada por Claus Ogerman, justiça seja feita, no disco norte-americano de Joyce Moreno – se manteve imaculada ao longo desses 45 anos, imune aos vírus do mercado predador.


Direto da Redação Marco Fukuyama

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